O detetive Perez Pirez estava em mais uma de suas incursões para desvendar o crime que havia chocado a nação: o assassinato da atriz e cantora Carmen Glam. Suas investigações o levaram até a região mais barra pesada da cidade, um lugar industrial, com grandes galpões recheados de negócios possivelmente escusos. A cidade dependia disso, mas também adoecia por conta de seus magnatas podres.
Perez Pirez viu uma movimentação estranha. Na calada da noite, munido de seu binóculos, percebeu dois homenzarrões lavando o chão de um escritório. A água era turva, de cor rubra.
- Foi ali que mataram Carmen.
Perez Pirez queria ver de perto. Era essencial que ele fotografasse a cena do crime. Pulou o muro com cautela, rastejou em algumas partes. Ouviu os latidos distantes de um cachorro.
O detetive chegava cada vez mais perto. Porém, ao se deparar com a porta fechada do escritório, espiou pela janela e percebeu que os dois homens não estavam mais lá.
Duas sombras se agigantaram atrás dele e não houve tempo para reação. Um deles pegou a pistola e deu uma coronhada na nuca de Perez Pirez, que caiu no chão. O segundo foi verificar o pulso do investigador.
- É, morreu.
- Morreu? Como assim, morreu?
- Morreu morrendo. Tá sem pulso.
- Mas, peraí, eu só dei uma coronhada na nuca!
- E você acha que uma coronhada é algo leve? Coronhada é pesado pra cacete. Cê fica pensando que isso aqui é coisa de cinema?
- Era pra ser!
- Fez merda...
- Caralho... Tá, e agora?
- Agora o quê?
- Pra onde a história vai?
- E você pergunta pra mim? Foi você quem matou o protagonista dessa história, não fui eu.
- Caralho, caralho, caralho...
- A gente nem tem nome, foi criado faz uns 40 segundos atrás limpando uma sala de sangue que eu nem sei de quem é!
- É da Carmen Glam.
- Quem?
- Carmen Glam! Tá lá em cima, no texto. Primeiro parágrafo. Ela é a razão da gente estar aqui.
- Acho que eu foquei demais na minha função. Aliás, a gente se conhece?
- Não, acho que não.
- Prazer, meu nome é... qual o meu nome?
- Eu também não sei o meu.
- A gente não tem nome… A gente nem sequer tem história pregressa… Que triste!
- Pois é... Que nome você gostaria de ter?
- Não entendo muito de nome. Quando a gente dá por si já tá sendo nomeado de alguma coisa... Dá um nome pra mim.
- Eu? Eu acabei de matar uma pessoa, não sei se sou a melhor escolha pra te batizar.
- Qualquer coisa, pensa em algo!
- Hum... Você é grande.
- Sim, igual você.
- Eu quase não consigo ver seu rosto, suas vestes são austeras, parece, só parece que você tem cara de mau, nada contra.
- Tudo bem.
- Rocha!
- Rocha?
- É.
- Eu tenho cara de Rocha?
- Você não pediu pra te batizar? Não gostou do nome?
- Sei lá... Rocha é meio genérico.
- É fortaleza, é sobrenome! Combina com você.
- Tá bom, ok! Rocha.
- E o meu? Agora quero um pra mim também.
- Cabide.
- Cabide? Cabide é coisa!
- Rocha também!
- Isso é vingancinha?
- Não! Eu só falei a primeira coisa que me veio à cabeça!
- A gente aqui com o corpo do protagonista...
- Que você matou!
- Que eu matei, que seja! O cara tá aqui e a primeira coisa que lhe veio à cabeça é Cabide? Não, eu não engulo e eu não curto!
- Eu também não gosto de Rocha.
- Tem todo um subtexto do nome aí!
- Subtexto? Agora você é escritor, Cabide?
- Eu não, mas poderia ser. Quem sabe? Se me dessem essa oportunidade... Mas não, tô preso aqui com um Rocha. Fui criado pra ser um grandalhão que cumpre ordens de sei lá quem?
- Às vezes você não tem vontade de quebrar padrões?
- Eu tenho. Na verdade eu até que quebrei um padrão aqui.
- Um puta padrão. Paradigmas!
- Bonita palavra, né? Paradigma. Se eu escrevesse eu ia querer colocar isso numa história. Posso pegar emprestada essa ideia.
- Vai fundo. Cabide, você acha que “essa” história tá indo pra algum lugar?
- Rocha, não sei. Alô? Tem alguém aí??? Ei!!!!
(ninguém responde de volta).
- Opa, tem alguém aí sim, hein?
- Onde?
- Ali em cima, três linhas pra cima. O cara fez uma rubrica!
- Que que é rubrica?
- Ali ó, aquilo que está entre parênteses.
- Você é muito cabeção. Não entendo nada disso.
(silêncio)
- Que silêncio o que! A gente tá conversando aqui!
- Com quem você tá falando?
- Ei!!! Quem é você? Como você ousa deixar a gente aqui numa situação dessas? Você deveria ter vergonha na cara!
(o escritor não tinha, era evidente. Entretanto, o próprio escritor não sabia o que estava acontecendo. As coisas haviam saído do controle e as rubricas se auto escreviam. Será que havia um escritor do escritor, uma força que escrevia acima dele?)
- O cara tá se perdendo legal.
(sentindo-se perdido)
- Como você sabe?
- Ele acabou de escrever, tá na intenção dele.
- Eu não consigo ver nada disso... Realmente, você nasceu pra ser um desses, Cabide.
- Obrigado, Rocha. Vai ficar por aqui?
- Não sei... Vou ver se surge alguma coisa. Talvez terminar de limpar o escritório.
Enquanto o cadáver literário de Perez Pirez se decompunha no chão, Cabide rumava para fora de linhas escritas, procurando escrever a própria história. O escritor nunca mais encontrou Cabide em qualquer documento ou linha de pensamento. Perdido, ficou se questionando se essa era a melhor maneira de terminar aquela história. O escritor do escritor também ficou se perguntando se essa história estava inteligível, parou um breve momento, e refletiu se havia algo além das entrelinhas que ele não estava observando. Revisou o texto, pediu ajuda para isso também, e enviou como newsletter para alguns conhecidos.
Contudo, o escritor do escritor do escritor, esse sim, nunca se manifestou. Um exemplo raro de narrador onisciente.
Vamos filmar isso!
O dia que o Cabide encontrar uma Escada, vai subir de vida!